CÃO PEREGRINO
No centrão de Minas Gerais, bem próximo à região do Serro, onde se produz o verdadeiro queijo mineiro curado, saboroso e disputado hoje até no exterior que, com o puro café produzido na região, faz-se o melhor lanche do mundo, hora esperada pela manhã, tarde e noite, como as melhores no correr do dia.
Uma propriedade pequena e bem cuidada, de um lado uma serrania de imponentes e anômalas ondulações e do outro uma pradaria imensa onde o vento corre solto e selvagem, dobrando o capim alto, igualando a uma “ola” nas arquibancadas dos estádios de futebol, pelas torcidas que vibram com a boa atuação de seus times; só encontrando paradeiro quando encontra as montanhas. Um espetáculo digno de filmagem, principalmente no pôr do sol quando as arvores e o capinzal ficam multicolores, aumentando a beleza; o capim gordura e o reflexo do raios solares nas pedras das montanhas e destas de volta para a relva. Um espetáculo de um belo arco iris sem ter caído um pingo de chuva. A paisagem é um quadro sumamente bem pintado em óleo sobre tela e as medianas e negras montanhas, a moldura.
Uma bela casa, estilo campestre, avarandada em todo o seu entorno, cortinas de chita soltas ao vento , varias redes para descanso e sofás toscos com almofadas de capim, para o descanso após a labuta. Na parte de traz, vê-se a comprida chaminé que nunca fica de férias, começando antes do sol nascer e descansando somente algumas horas no final da madrugada. Habitada por uma família compondo, os avós já idosos, mas sadios, o casal de meia idade e os três netos adolescentes Bárbara, Rodrigo e Juliana (gêmeos) que são os operadores da propriedade, filhos da bela descendente do casal Márcia Maria, divorciada há um ano e pouco. Uma bela horta, um belíssimo pomar, a galinhada caipira pelo terreiro, os cabritos pulando, a cachorrada de estimação e a meia dúzia de boas vacas que fornecem o leite para o consumo e para o famoso queijo do Serro. Aliado a tudo isto, a plantação de arroz, feijão, milho; o chiqueiro com belos espécimes e tudo mais que a pequena propriedade consome. Enfim... Um paraíso na Terra...
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Seu Jaci costumeiramente, com seu belo cavalo amarronzado e com uma estrela natural na testa, de nome Volga, fazia o percurso pelos limites e interior da propriedade, verificando se tudo estava bem ou se existia alguma cerca caída ou outra irregularidade qualquer; conhecia cada centímetro daquela posse e amava cada milímetro dela cuidando, embelezando, pintando, reformando enfim não deixando nada a desfigurar aquele recanto sagrado.
Numa tarde quente de verão, nestas cavalgadas de trabalho, ao passar por uma grande moita de capim sempre-verde, viu qualquer coisa se mexendo, calculando que seria algum bicho do mato, apeou do seu Volga e sorrateiramente valendo-se de um pedaço de pau, foi ver o que era; abrindo devagarinho a moita, lá estava um linda cadela de cor amarelada salpicada por manchas brancas e pretas e um caudal tipo bandeira; muito gordinha e já nos dias de dar de presente ao mundo suas crias. Mansa, simpática, docilíssima, recebeu sem nenhum susto os chamamentos e afagos de Seu Jaci, parecendo estar faminta e sem forças para procurar alimento, vez que, realmente estava a algumas horas de parir os pequenos filhos de Deus. Seu Jaci, amante dos animais e condoído do seu estado, a seu modo, fez com que ela viesse acompanhando-o de volta à sua casa. Vinha ela andando pesadamente, rebolando num típico andar das grávidas, como uma pequena nau à deriva num mar agitado...
Chegando em casa sua esposa, a simpática D. Bárbara, surpresa ficou com aquela visita, que necessitava de tantos e especiais cuidados; logo colocando leite numa vasilha para a parturiente e uma cesta grande perto do fogão de lenha, para que ela se sentisse confortável e segura. Foi uma festa geral, à medida da chegada dos componentes da casa, apostando cada um, quantos filhotes nasceriam e quantos seriam machos ou fêmeas, à cada vinda a cozinha a cadela recebia um afago carinhoso. Virou a rainha da casa, também parecia sorrir cada vez que um aparecia.
O pessoal da casa invariavelmente levantava-se por volta das 04:30 todos os dias e na segunda madrugada da chegada da ilustre visita, já depararam com a mesma abanando o rabo, “sorrindo” e com os sadios filhotes, ao todo quatro, sendo duas “meninas” e dois “meninos”, com os olhos ainda fechados, mas já cuidando da vida e agarrados inclusive com ajuda das patinhas nas generosas tetas maternas que retribuíam com o abundante néctar da vida.
O tempo vai passando e os cinco personagens se instalaram como os príncipes e a mãe como a rainha, absolutos, daquele reino doméstico. À medida do crescimento, os filhotes pareciam “meninos levados” a saltitarem dentro da casa e pelo terreiro afora, correndo atrás das galinhas, pombas e passarinhos, querendo voar tambem, pelo menos é o que parecia. A linda cadela foi renomeada de Nina e os filhotes foram doados a parentes e amigos que com eles se encantaram; menos um.
Este que ficou, foi o primeiro a sair da cesta maternal, a abrir os olhinhos, a dar os seus finos latidos e a morder carinhosamente nas barras de saias e calças do pessoal da casa, era o “fofinho”, de cor amarelina com ondas brancas ao correr do corpo e também cauda embandeirada como o de sua mãe. Deram-lhe o nome de ‘DICK’.
De inicio, Dick, ficava mais dentro de casa e no terreiro, interessando-se por tudo, numa vivacidade impressionante e mais curioso ainda, interpretando símbolos e sons, como uma pessoa humana fôra; latindo a tudo aquilo que desconhecia ou achava estranho. Dessa forma, adquiriu a admiração do pessoal, pois a cada alerta dele, sabia-se que algo estranho estava acontecendo. Dick foi crescendo e demonstrava cada dia mais, perspicácia e inteligência, afabilidade e doçura, coragem e intrepidez; tirava seus cochilos pela manhã e após o almoço e ao resto do dia e principalmente à noite, era o guardião da propriedade e de seus donos.
Dick era de uma inquietação sem par, quando notava que tudo estava bem na propriedade, visitava as chácaras vizinhas, fazendo o mesmo papel de guardião e já com intimidade com os donos das mesmas, onde era muito querido por todos e invariavelmente ganhava afagos e geralmente um suculento osso para roer. Diversas vezes, a intervenção do Dick em alguns episódios, valeram-lhe admirações, elogios e o respeito do povo da região. Uma vez seu Jaci havia amarrado o cavalo em uma árvore para verificar uma mina d’agua, como sempre Dick ia na frente como que, fazendo o papel de “batedor”, abrindo o caminho para seu querido dono; estando a uns 10 metros de distancia à frente, em saltos de ataque e recuos defensivos afastou uma cobra de espécie venenosa que fatalmente iria ameaçar a integridade física de seu dono.
Noutra feita, havendo um baile numa chácara vizinha, o jovem Rodrigo, neto de seu Jaci, tendo sido convidado e de volta para casa, lá pelas duas horas da madrugada, passando por um bosque, com o Dick como seu batedor, viu o mesmo adentrar na matinha e minutos depois ouviu grunhidos, latidos e a sensação de uma luta feroz; assustado, Rodrigo acendeu a lanterna e esperou um pouco, meio amedrontado, apareceu o Dick arranhado e com manchas de sangue pelo corpo, arfante, mas ostentando aquela doçura peculiar, abanando a cauda para seu amigo. No outro dia, Rodrigo voltou ao local e vasculhou para ver o que tinha acontecido e vê um cachorro do mato morto e não foi difícil denotar a marca dos dentes do Dick, na jugular da fera.
Outra vez, Dick dormitava na varanda da casa e neste dia havia visitas de amigos da família e dentre os visitantes estava uma criancinha de aproximadamente um ano que “engatinhava” pela varanda sem que seus tutores e pagens houvessem notado. O menininho, insistia em sair da varanda e ir ao terreiro com a atenção chamada pelos bichos domésticos, que o encantava ; Dick notando o perigo encostou a cabeça no corpinho do bebê e o empurrava de volta para a varanda, o bebê por sua vez insistia em descer e dava tapas na cabeça do Dick, que carinhosamente resistia e não deixava que o menininho saísse do lugar, até que uma pessoa recolheu o nenê e afagou a cabeça deste cão maravilhoso.
Toda tarde, seu Jaci, recolhia o gado para o curral, galinhas ao galinheiro e os outros animais para o pernoite; toda tarde a mesma rotina, com chuva ou com sol, era e é, uma sagrada “mesma coisa”. Dick, foi observando e dentro de pouco tempo, já ajudava seu dono a fazer a tarefa e aos poucos, quando Seu Jaci ia fazer o serviço, Dick já o tinha feito, só faltando fechar as portas e porteiras, isso, “ ele ainda não sabia fazer”... Nas horas de sua “folga” e nos seus passeios às outras chácaras, oferecia a mesma ajuda aos vizinhos que, ficavam encantados com o cão que peregrinava por cinco a seis propriedades diuturnamente, ajudando e alertando no que podia e via.
Quantos gambás afugentou dos galinheiros pela noite afora naquelas propriedades circunvizinhas, feriu e, esta nunca mais voltou, uma raposa que de quando em vez , vinha saborear uma galinha caipira; com seus latidos e saltos, afugentou vários gaviões-carcará à cata de filhotes dos galináceos. Cobras foram inúmeras, por duas vezes picado por elas, sendo uma venenosa, tendo até que tomar uma anti-rábica. Gado perdido era localizado por ele em pouco tempo, fazendo o mesmo em favor dos vizinhos que vinham pedir ajuda ao Sr. Jaci no empréstimo do Dick, para tal tarefa. Tantas e quantas vezes via-se aquele “cão peregrino”, em cima de um galho de uma árvore, auscultando perigos através seu faro e visão privilegiados. Para ele não tinha hora nem distancia, qualquer barulho pela madrugada. na vizinhança, lá ia a toda velocidade como um enxerido, para averiguar e entrar em ação, se necessário fosse, sem dar um latido, para ninguém ser acordado, se não houvesse perigo iminente.
Naquela casa não se deitava sem saber onde o Dick estava; Se si atrasava, podia-se deduzir que uma boa ação estava sendo executada.
Mas tudo que é bom dura pouco, ou o tempo passa muito depressa.. em uma tarde seu Jaci foi a cidade fazer umas compras e costumeiramente, Dick pulava na caçamba da camionete e ia junto. Chegando, enquanto seu dono fazia as compras, ele permaneceu dormitando no veiculo, vigiando as mercadorias já depositadas na carroceria. Segundo contam, uma outra camionete parou em paralelo, o desconhecido, jogou um spray em Dick que ficou atordoado na hora, levando a mercadoria e a ele também. Viram esta camionete pela cidade e dizem que a placa indicava uma cidade longinqua e desconhecida.
Não precisamos dizer da tristeza que assomou a família, das lágrimas vertidas, da falta que este divino filho do Criador fez e faz a todos da região, de sua simpatia, prestimosidade e segurança que oferecia pela sua peregrinação incansável.
Onde andará Dick ? Que com ele aconteceu ? Estaria bem ? Não ! Se bem estivesse, qualquer que fosse a distancia ele teria voltado, mesmo trôpego e cambaleante.
Uma pena: Não ter deixado um descendente !
Uma certeza: Se um animal tem alma, mesmo que seja atrasada ou imperfeita, esta estará no Céu, ainda fazendo o bem a quantos encontre...
PLINIO COUTINHO LINHARES
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
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